Transtorno mental: você aceita o diferente?
28 de julho de 2020
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Imagine algumas cenas. Você encontra uma amiga na rua e vocês se cumprimentam. De repente, ela repara que você carrega um pingente de uma coruja e dispara: “por que você está usando essa coruja no pescoço? Você é uma bruxa e está querendo me enfeitiçar. Por que você quer me matar?”. Ou você é uma mãe e seu filho adolescente está há dias no quarto escuro. Não sai para nada, mal come, pula banhos. Você já tentou conversar, já tentou abrir as janelas, barganhar, apelou para os amigos, já fez de tudo. Nada, absolutamente nada tira ele de lá. Ou, ainda, o seu colega de trabalho te chama para um café e propõe que você embarque com ele em um projeto grandioso. Talvez grandioso demais para ser viável, você considera, mas ele tem toda a confiança de que aquele é o plano infalível para alavancar suas carreiras. Imaginou? Talvez você tenha sentido medo. Confusão. Impotência. Talvez um pouco de raiva. Ou até tenha começado a questionar a própria sanidade. Dá vontade de se afastar, de sair da situação. De desistir. De deixar para lá. Pois é desse lugar que as reações preconceituosas contra o transtorno mental começam a brotar. Não por maldade. Mas porque tudo isso coloca a gente na defensiva. “Quando eu falo que tem uma coruja aí e que você é uma bruxa, você olha para você. Você não se pergunta de onde eu tirei isso, você não se dirige para o outro”, explica a psiquiatra Dra. Alexandrina M. A. Silva Meleiro, doutora em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “A maioria das pessoas é autocentrada, voltada para si. Então a gente precisa aprender a não negar o outro.” Quando estamos tão ocupados de nós mesmos, fica difícil abrir espaço para o outro com interesse. | ||
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Pois saiba que você não está só e que dá para fazer diferente. Com informação, conhecimento sobre os nossos impulsos e sobre os transtornos, além de uma dose de disposição para a escuta, é possível escolher uma reação diferente. Em vez da certeza apressada, a curiosidade. Em vez da rejeição, a aceitação. “A maneira de diferenciar o que é um comportamento de escolha da pessoa de uma patologia é, cada vez mais, a gente divulgar o conhecimento, para que as pessoas saibam mais e possam discutir com a família, com um clínico geral, com um psicólogo, com um psiquiatra”, diz o psiquiatra Dr. José Paulo Fiks, professor afiliado pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do Serviço de Atendimento e Pesquisa em Violência e Estresse Pós-Traumático (Prove). Falar pode mudar tudo. | ||
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Qual é o lugar do louco?“O que fazer com quem não está adaptado a esse sistema social de produtividade e competitividade que criamos? O que não mudou é que continuamos querendo excluir aquilo que é diferente.” Dra. Giuliana Cividanes.
“O matemático John Nash era um esquizofrênico bastante grave, mas era um gênio. Ele fez um estudo para mostrar ao congresso norte-americano que se, em vez de assistencialismo aos portadores de transtorno mental, eles oferecessem oportunidades dentro da capacidade de cada um, eles teriam uma economia anual de milhões de dólares. As pessoas podem ocupar diferentes lugares na sociedade e serem igualmente úteis.” Dra. Giuliana Cividanes. Lidar com o diferente, com as dificuldades emocionais e com loucura, não é simples e nós, enquanto humanidade, já tentamos diversas estratégias diferentes ao longo da história. E assim vamos carregando preconceitos de séculos. A segregação já acontecia na Idade Média. “Até o século 19, quando foram instaurados os primeiros hospitais, depois chamados de manicômios, havia um desrespeito total, até por desconhecimento”, conta Dr. Fiks. “Todos aqueles que tinham alguma coisa de diferente, que ia contra a sociedade, eram asilados. Tanto quem tinha um transtorno mental quanto as mocinhas que se apaixonavam e engravidavam fora do casamento, iam todos para uma mesma instituição para serem esquecidos”, diz Dra. Giuliana Cividanes, mestre em psiquiatria pela Unifesp. Só depois, com os grandes manicômios, é que começamos a separar e propor algum tratamento para quem tinha alterações emocionais e comportamentais que, na época, acreditava-se ser disfunções neurológicas. A psiquiatria é uma especialidade moderna, que começou, praticamente, no século 20. | ||
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Nos anos 1960, com a contracultura e a antipsiquiatria, a área passou por um divisor de águas. “Foi quando veio à tona a ideia de que a loucura não existe, que há uma criatividade reprimida e que não se deve medicar. Com a ideia de tornar mais livres aqueles indivíduos que estavam sofrendo, você traz para eles uma carga muito maior de responsabilidade que, hoje sabemos, a doença mental impede que ele tenha”, explica Dr. Fiks. “Hoje o tratamento é humanista em praticamente todo o mundo, em um contexto de como a gente pode entender a doença, compreender o doente e trazer de novo a possível liberdade através de um bom tratamento.” E, com essa liberdade, vem o desafio da inserção social. Não mais alienados em manicômios, as pessoas com transtornos mentais, em toda sua diversidade e níveis de gravidade, vivem em sociedade. Mas a exclusão persiste, ainda muito com base em preconceito. “O preconceito está na negação de uma doença e no estigma, ou seja, o isolamento, o deboche em relação ao sintoma e a diminuição desse indivíduo como cidadão”, diz Dr. Fiks. “Antigamente, para sobreviver em sociedade, a gente não podia ficar carregando os doentes, os velhos, os problemáticos. Hoje, com tecnologias, tentamos fazer todo mundo ficar vivo. Mas todo mundo que fica vivo tem a mesma capacidade? O que fazer com quem não está adaptado a esse sistema social de produtividade e competitividade que criamos? O que não mudou é que continuamos querendo excluir aquilo que é diferente”, diz Dra. Giuliana. tratamento traz autonomia ao paciente, mas não nos livra de termos que lidar com o diferente. “Fazer de conta que as diferenças não existem também é preconceito. O objetivo do tratamento não é tornar todo mundo igual, mas diminuir o sofrimento.”, diz Dra. Giuliana. Já Dra. Alexandrina provoca: “O louco tratado é normal.” Mas, afinal, o que é ser normal? | ||
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HÁ SAÚDE MENTAL QUE RESISTA À PANDEMIA?
A pandemia da Covid-19 deixou essa noção um pouco mais próxima. Seja pela ameaça do vírus, seja pelo distanciamento físico, estamos todos ficando um tanto fora da casinha. “Tem um grupo de pessoas que vai passar a entender quem tem mania de limpeza. Tem quem entenda o que é ficar sem conseguir fazer nada porque agora também acorda triste e desanimado e achando que isso não vai ter fim. Sente uma amostra grátis e imagina o que é ter isso numa proporção de vida inteira”, diz Dra. Alexandrina. “A pandemia deixou as pessoas mais sensíveis e mais sensibilizadas à doença mental”, diz Dr. Neury. “Porque o desconforto emocional passou a ser algo mais frequente, vivenciado por cada um.” Quem já tinha alguns traços de transtorno mental ou estava com os sintomas sob controle corre o risco de piorar. Dr. Fiks aponta que estamos vivendo a quarta onda da pandemia, a que afeta a saúde mental. “É uma situação de estresse prolongado, de ausência de perspectiva de futuro, de mudanças enormes para a sociedade. O medo da covid-19 já está passando, mas os impactos na saúde mental estão crescendo.” O isolamento é especialmente nocivo. “Somos sociais. Para manter a minha sanidade mental, eu preciso do feedback do outro. Temos neurônios espelho que precisam do contato do outro para se manterem equilibrados”, diz Dra. Giuliana. “Tanto que o isolamento é usado como método de tortura, porque é uma situação fisiológica de risco para o desencadeamento de transtorno mental.” | ||
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O CAOS CALMO DENTRO DE MIM
Quando a gente conhece todo esse sofrimento do outro, nosso incômodo frente a ele fica até menor. Por isso, estar ciente do grande desafio que é lidar com o transtorno mental não quer dizer que é aceitável seguir com as velhas reações e preconceitos. Com informação, dá para agir diferente. “Informação é a chave”, diz Dr. Andres. “É partir do princípio de tentar entender o diferente. E saber que há tratamento, há acolhimento, há possibilidades. A medicina evoluiu, hoje a gente tem recursos e é possível tratar a grande maioria dos casos.” Além disso, ter abertura para perguntar e escutar, de coração e mente abertos. “Existe uma diferença, essa diferença tem que ser escutada, em primeiro lugar. Em segundo lugar, ela tem que ser dialogada”, diz Dr. Fiks. “Quanto mais você se interessar e perguntar e escutar, eles vão se sentir mais acolhidos e fortalecidos para falar quando eles estão mal.” Para dar conta do desconforto e passar para o passo seguinte, da escuta e do diálogo, é preciso também de uma boa dose de maturidade. “Uma pessoa fora de suas condições mentais normais de alguma maneira também nos desafia. Se eu não tiver uma capacidade de conter, de ficar diante do desconhecido só na observação, se eu não tiver esse caos calmo dentro de mim, parto para o preconceito”, diz Dr. Neury. Lembra das situações lá do começo do texto? E se, depois de notar o medo, a impotência, o incômodo, você experimentasse não reagir imediatamente e, em vez disso, olhar com curiosidade para o outro? Será que por trás da preguiça está uma depressão? Será que por trás da acusação de bruxaria está uma esquizofrenia? Será que por trás da excessiva confiança está a euforia de um bipolar? A pergunta muda tudo. “Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si: —Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, — ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?” O alienista, Machado de Assis | ||
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